Thelema e o Islã — O Hadith de Gabriel e os Três Verdadeiros Graus

Comentarios comparativos entre Thelema e o Islã, a partir do Hadith de Gabriel e os Três Graus mencionados no Liber AL vel Legis

Victor Vieira
4 min readMar 8, 2024

A utilização da palavra “Islã” como termo abrangente para se referir à religião que deriva dos ensinamentos de Muhammad é um desenvolvimento relativamente moderno, alcançando seu auge apenas nos últimos séculos. Até o século XX, relatos externos frequentemente utilizavam o termo agora rejeitado “Maometanismo”. Quando a cultura islâmica estava em sua ascensão original, era comum para seus seguidores se referirem de forma mais simples a din (ou seja, “religião”), ou, para serem mais específicos — para distinguir das outras religiões — usar os termos corânicos din Ibrahim (a religião de Abraão) ou din al-Haqq (a religião da Verdade, ou seja, a religião de Deus).

A palavra árabe Islã denota “submissão” (compartilhando uma raiz com salam, “paz”), e originalmente era usada apenas para se referir às características mais externas e evidentes do din de Muhammad. A exposição mais clara da relação entre o Islã mais específico e o din geral pode ser encontrada no importante Hadith de Gabriel:

Umar Ibn Al-Khattab relata: Um dia, quando estávamos com o Mensageiro de Deus, um homem com roupas muito brancas e cabelos muito pretos veio até nós. Nenhum sinal de viagem era visível nele, e nenhum de nós o reconheceu. Sentando-se ao lado do Profeta, encostando os joelhos nos dele e colocando as mãos nas coxas dele, ele disse: “Me diga, Muhammad, sobre o Islã.” Ele respondeu: “Islã significa que você deve testemunhar que não há deus além de Deus e que Muhammad é o Mensageiro de Deus, que você deve observar a oração, pagar o zakat, jejuar durante o Ramadã e fazer a peregrinação à Casa se for capaz de ir lá.” Ele disse: “Você falou a verdade.” Ficamos surpresos com ele ao questioná-lo e depois declarar que ele falou a verdade. Ele disse: “Agora me fale sobre Iman.” Ele respondeu: “Significa que você deve acreditar em Deus, em Seus anjos, em Seus livros, em Seus mensageiros e no Último Dia, e que você deve acreditar no decreto tanto do bem quanto do mal.” Observando que ele havia falado a verdade, ele então disse: “Agora me fale sobre Ihsan.” Ele respondeu: “Significa que você deve adorar a Deus como se O visse, pois Ele vê você, embora você não O veja.” Ele disse: “Agora me fale sobre a Hora.” Ele respondeu: “Aquele que é perguntado sobre ela não está melhor informado do que o que está perguntando.” Ele disse: “Então me fale sobre seus sinais.” Ele respondeu: “Que uma serva dê à luz sua senhora, e que você veja homens descalços, nus e pobres, e pastores se exaltando em edifícios.” Umar diz: Ele então partiu, e depois de esperar por muito tempo, o Profeta disse a mim: “Você sabe quem era o questionador, Umar?” Eu respondi: “Deus e Seu Mensageiro sabem melhor.” Ele disse: “Era Gabriel que veio a você para ensinar-lhe sua religião [din].”

Esta narrativa é classificada como um hadith “autêntico”, ou seja, um dos textos mais autorizados do Islã fora do Alcorão em si. É interessante em muitos aspectos — a aparição de Gabriel aos Companheiros do Profeta (imagine Aiwass aparecendo sem aviso prévio em Cefalu) e a forma ritualizada e catequética do diálogo são características notáveis. Mas para os propósitos presentes, quero me concentrar na divisão tripartida do din em Islã, Iman e Ihsan. (As perguntas sobre “a Hora” do Juízo Final e “seus sinais” são códigos para Iman.) Esses três são convencionalmente traduzidos como “submissão” (ou observância), “fé” (ou crença) e “perfeição” (ou virtude espiritual). Os três podem ser entendidos como correspondendo aos três “verdadeiros graus” (Liber AL vel Legis, Capítulo I, versículo 40) de Thelema, explicados pelo anjo do 13º Aethyr (Liber 418) da seguinte forma: O homem da terra é o adepto. O amante dá sua vida ao trabalho entre os homens. O eremita vai solitário e dá apenas de sua luz aos homens. Na doutrina sufi, é típico interpretar Islã, Iman e Ihsan como três graus. O Muçulmano (aquele que exerce o Islã) está orientado para a shariah, que embora literalmente signifique “caminho”, é ordinariamente traduzida como “Lei”. O Mu’min (aquele que exerce o Iman) embarcou na tariqah, o “caminho” iniciatório de realização. E o Muhsin (aquele que exerce o Ihsan) age a partir de sua experiência de haqiqah, a “realidade” espiritual final. (Note que os Sufis usam o termo Mu’min de maneira um pouco diferente do que outros, para quem ele simplesmente designa um “crente”.)

A identificação da Lei com o mais esotérico dos três graus parece lançar uma luz não habitual sobre Liber AL vel Legis I:39–40.

39. A palavra da Lei é Θελημα.

40. Quem nos chama de Thelemitas não errará, se olhar de perto para a palavra. Pois há dentro dela Três Graus, o Eremita, e o Amante, e o homem da Terra. Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.

Diante desse contexto, o “Thelemita”, que é o homem da Terra como adepto da Lei, poderia significar todos os três graus por sinédoque, da mesma forma que “Muçulmano” agora faz.

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Victor Vieira

Tarólogo, praticante e pesquisador de assuntos correlatos à magia e ocultismo. http://instagram.com/victoreuvieira